Wednesday, October 02, 2013

ainda a escola dual

Não poucas vezes, principalmente entre aqueles profissionais que dedicam a sua vida e trabalho às escolas e à Educação, surgem inúmeras dúvidas, e legítimas, sobre as posições críticas em torno da chamada Escola Dual e sobre as “vias vocacionais”. Falta de compreensão justificada quer pela forma como se entregam ao combate pelo sucesso escolar dos estudantes que acompanham, quer pela situação social com que se defrontam e que significaria, muito provavelmente, na ausência de respostas próprias, o abandono escolar de milhares de jovens.

Hábeis são as armadilhas ideológicas com que a classe dominante mina o argumentário pseudo-social com que justifica a profunda desfiguração que vai impondo aos sistemas educativos, em vários locais do mundo, sendo um deles Portugal.

A tese mais difundida e que, aparentemente, mais colhe é a de que as vias profissionalizantes, vocacionais e profissionais são a forma de “diversificar a oferta educativa” para dar resposta à desmotivação de muitos jovens que abandonariam a escola na ausência dessas vias. Outros tantos afirmam ainda que estas vias devem ser encaradas como a única forma de manter nas escolas os jovens que não têm vocação para o prosseguimento de estudos. Estas duas teses, por si sós, suscitam logo um vasto conjunto de considerações, dúvidas e respostas.

Por um lado, se aceitamos que existem vias de escolarização especialmente dedicadas a jovens de grupos susceptíveis de abandonarem em massa a escolaridade, isso significa que aceitamos que a escola deve tratar de forma diferenciada as diversas camadas e classes sociais. Essa consideração pode não ser errada, na medida em que a Escola Pública, para assegurar sucessos escolares equiparáveis entre as classes sociais, deve mobilizar para as camadas mais pobres mais meios do que para as camadas mais ricas. Todavia, a desqualificação das vias profissionalizantes, vocacionais, tem significado oposto. Há um facto que não pode ser, de forma alguma, ignorado ao percorrer o caminho de raciocínio que este artigo traduz: o insucesso e o abandono escolar não são fenómenos imunes ao efeito de classe, antes pelo contrário, são resultado das assimetrias socias entre classes e da degradação das condições de vida das camadas exploradas ou marginalizadas da sociedade capitalista. Assim, a criação de respostas para as camadas juvenis expostas aos fenómenos do abandono e do insucesso é, na prática, o mesmo que a criação de respostas para as camadas mais empobrecidas da população, as camadas trabalhadoras. Posto isso, pergunta-se se enquanto comunista posso ser contra a existência de respostas educativas próprias para combater as dificuldades com que defrontam esses jovens. Claro que não. A Escola Pública e o Estado têm a obrigação de mobilizar todos os meios para garantir que a condição social do jovem não age como determinante no seu percurso escolar, académico e formativo. Essa obrigação passa, pela eliminação de mecanismos de triagem social que reproduzam as assimetrias de origem e isso significa que a Escola deve estar munida dos meios, recursos, e instrumentos administrativos que lhe permitam colocar o estudante filho de trabalhadores em pé de igualdade perante o conhecimento e a técnica, quando comparado com o filho das camadas mais ricas da população.
A cristalização em torno dos “conceitos modernos” de “formação em contexto laboral”, de “ensino dual”, de “ensino vocacional”, que conquista os mais incautos e dedicados profissionais da educação, contribui para uma regressão social e civilizacional que transporta Portugal para o passado e aprofunda o papel do Estado como instrumento da classe dominante. O facto de existirem pesados indicadores de abandono e insucesso escolares, fruto da necessidade de muitos jovens ingressarem precocemente no mercado de trabalho ou na obtenção de meios de forma marginal, deve pois ser combatido pela capacitação da Escola Pública no âmbito do número de profissionais, professores, pedagogos, psicólogos, auxiliares de acção educativa, mas também pela qualificação do processo educativo, pela sua modernização e permanente melhoria. A acção social escolar, verdadeiramente digna, tem igualmente o dever de criar as condições para a frequência escolar e acesso ao conhecimento por parte de todos os estudantes.

Estas duas considerações podem ser simplificadas da seguinte forma:

1.       A Escola não deve desqualificar a resposta de classe, como forma de reproduzir a assimetria pré-existente, mas antes qualificar a resposta de classe como forma de gradualmente eliminar essa assimetria. Não é aceitável que os filhos das camadas mais empobrecidas e exploradas sejam considerados à partida como intelectualmente desfavorecidos ou desprovidos de vocações adequadas à aquisição de conhecimentos, enquanto que os filhos das camadas mais ricas são, só por deterem a origem de classe que detêm, vocacionados para o desempenho das mais qualificadas profissões e para o acesso ao conhecimento e à cultura aos mais elevados níveis. A mais suave aceitação desses pressupostos levar-nos-ia para uma sobrenatural distribuição da inteligência de acordo com os meios económicos entre os seres humanos.


2.       A acção social escolar não pode representar um apoio na miséria, nem um mero fingimento. A acção social escolar só pode ser entendida como o conjunto de mecanismos que possibilitam ao filho do trabalhador estar em exacto pé de igualdade com o filho do patrão perante o acesso e a frequência escolares. Ou seja, a gratuitidade do ensino é uma questão fundamental para ultrapassar as barreiras sociais e económicas que estão na origem do problema que o ensino vocacional diz querer resolver. A acção social escolar só é efectiva se o estudante carenciado estiver perante a Escola com o mesmo grau de exigência social e económica que o Estudante não carenciado. Se todo o Ensino for absolutamente gratuito, então à acção social escolar basta assegurar que a família carenciada não tem de fazer um esforço superior às restantes para ter os filhos a estudar.

Se já partirmos com essas considerações assumidas, ou pelo menos debatidas, o debate sobre o ensino dual torna-se mais fácil e a posição que se lhe opõe torna-se mais compreensível. Não se trata, pois, de estigmatizar um tipo de “ensino”, nem tampouco aqueles que o frequentam ou os que nele trabalham, mas sim de não aceitar que pode o Estado criar uma via de ensino desqualificado e orientado para a formação profissional  exclusivamente para os filhos das classes exploradas. A propaganda do “ensino ou formação em contexto laboral” que surge apregoado como a solução para os problemas de falta de trabalho para os jovens assenta no dogma da reprodução da assimetria, caso contrário, porque não são os filhos dos ricos também formados nessas circunstância? Se a formação em contexto de trabalho é tão espectacular, por que acaba sendo apenas dirigida para os filhos dos trabalhadores?

A defesa de um sistema dual, ou ainda mais ramificado, assenta num preconceito classista que determina que apenas os jovens mais ricos podem aceder aos mais elevados níveis de conhecimento e que para os restantes se considera já um sucesso o facto de aprenderem a fazer uma ou duas coisas de jardinagem. No essencial, com isto a classe dominante deixa de dispender de meios para proceder à formação profissional dos trabalhadores e passa essa responsabilidade para o Estado que depois vende essa formação profissional como uma medida social e económica. 

A escolaridade obrigatória deixa de ser um direito para ser convertida numa espécie de formação profissional compulsiva.


A defesa de um sistema dual comporta ainda uma postura política mais grave: a da aceitação da assimetria de origem como insanável e a da abdicação do direito a uma Escola Pública de Qualidade para todos. Ou seja, perante a realidade social, abdicamos de lutar pelo direito de todos a aceder aos mais elevados graus do conhecimento, da cultura, da arte. Aceitamos que para uns, deus ou a classe dominante, reservaram o acesso a saber desempenhar tarefas, a manifestar competências e a outros foi dado o supremo direito a serem formados como indivíduos conscientes, críticos e criativos. O sistema capitalista, a classe dominante, assegura assim que a crítica e a criatividade fiquem reservadas precisamente àqueles que as utilizarão para aprofundar a exploração e jamais para a eliminar. 

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